Sob Bolsonaro, a PRF (Polícia Rodoviária
Federal) ampliou suas atribuições e mudou seu eixo de atuação, com afrouxamento
da fiscalização do trânsito nas rodovias e aposta no combate ao tráfico de
drogas.
A nova postura resultou em apreensões recordes
de cocaína e operações com dezenas de mortes --além de ser apontada como causa
das novas altas no número de óbitos em rodovias, após sete anos em queda. Segundo
a Constituição, a PRF tem como função o patrulhamento das rodovias federais. A
corporação, entretanto, assumiu novas responsabilidades e, com o
desenvolvimento de tecnologias de inteligência, passou a atuar em operações com
outros órgãos para coibir a exploração sexual e o trabalho escravo.
No governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a
PRF usou como pretexto a Lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública),
sancionada em 2018, além de duas portarias, para permitir que agentes da
corporação subissem morros e participassem de operações com polícias estaduais.
A primeira portaria foi editada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro, em
outubro de 2019. A norma autorizava a PRF a atuar em operações conjuntas e até
a cumprir mandados de busca e apreensão.
O texto contrariou delegados da PF (Polícia
Federal) porque permitia que a PRF participasse de ações de natureza
investigativa, o que foi considerado uma invasão nas atribuições da corporação.
Em janeiro de 2021, o então ministro André Mendonça (Justiça) editou nova
portaria para retirar o trecho que causava discórdia entre as polícias, mas
manteve a permissão para atuar em operações conjuntas.
Foi com esse arcabouço legal que a PRF integrou
as operações na Vila Cruzeiro (RJ), com 23 mortos, em Varginha (MG), com 26
mortos, e em Itaguaí (RJ), com 12 mortos, entre outras. Em resposta a pedido
via Lei de Acesso à Informação, a PRF afirmou que, de 2018 a 2022, as ações da
corporação provocaram 58 mortes. Os dados, porém, não consideram a letalidade
das operações com outras forças de segurança.
O ex-ministro da Segurança Pública Raul
Jungmann, um dos principais articuladores da Lei do Susp, disse à Folha de
S.Paulo que a atuação da PRF em operações violentas fora de rodovias é uma
deturpação da lei sancionada por Michel Temer (MDB). "É muito claro que há
um desvirtuamento da natureza e da missão legal de uma polícia tecnicamente bem
aplicada, com bons quadros, cuja missão é evidente: fazer a fiscalização e o
monitoramento dos mais de 70 mil quilômetros de rodovias federais",
afirmou.
Para ampliar a capilaridade dos batalhões de
choque, a PRF descentralizou o Comando de Operações Especiais e criou, em 2020,
comandos espalhados nas cinco regiões do país. Os policiais que atuam nas operações
conjuntas fazem cursos específicos. E, com o objetivo de participar de ações
fora das rodovias, a PRF do Rio de Janeiro inaugurou, em 2020, uma favela
cenográfica para o treinamento dos agentes. O espaço, de 540 m², simula uma
comunidade com 22 casas e uma torre, onde os agentes da PRF em treinamento
precisam invadir o local para resgatar vítimas fictícias ou objetos escondidos.
O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, Renato Sérgio Lima, afirma que a construção da favela cenográfica é um
símbolo da transformação da PRF numa "polícia combatente". "Você
tem a PRF com as mesmas estruturas, mas com normas legais que permitem ao
governante transformar a polícia histórica de caráter civil em uma polícia de
caráter militar típico."
Associações vinculadas à PRF e especialistas em
segurança pública criticam também o fato de a corporação ter afrouxado a
fiscalização nas rodovias, atendendo a pedidos de Bolsonaro. Em 2019, a PRF
suspendeu o uso de radares móveis para aplicação de multas. Os equipamentos,
segundo decisão de Bolsonaro, deveriam ser usados apenas com caráter
pedagógico, sem punição aos infratores, para reverter a "utilização
meramente arrecadatória dos instrumentos medidores de velocidade". Com a
determinação, as infrações de velocidade caíram quase pela metade: de 4,8
milhões em 2018 para 2,6 milhões em 2021. O afrouxamento ainda reduziu em mais
de 80% o número de testes que detectam a presença de álcool no sangue realizados
pela PRF. Foram 1,7 milhão em 2018 e 299 mil em 2022.
Para o vice-presidente da FenaPRF (Federação
Nacional da Polícia Rodoviária Federal), Marcelo Azevedo, a redução na
fiscalização foi a principal causa para os números de mortes em rodovias voltarem
a crescer em 2019 após sete anos em queda. Em 2011, foram registrados 8.675
óbitos em rodovias federais. As cifras caíram sucessivamente até 2019, quando
foi registrada a primeira alta, com 5.333 óbitos. O dado permaneceu estável,
com pequenas variações em 2020 (5.291) e 2021 (5.381).
"Quando [Bolsonaro] fala que existe uma
'indústria da multa', que a fiscalização de velocidade só serve para arrecadar
dinheiro, cria uma narrativa de que a PRF está perseguindo o cidadão. E
historicamente a falta de fiscalização está associada ao aumento das mortes nas
rodovias", afirma Azevedo. Em nota, a PRF diz que a avaliação das
variáveis envolvidas no aumento e na redução de acidentes é "extremamente
complexa, visto que a frota nacional circulante aumenta a cada ano, assim como
ocorre o contínuo aumento populacional, e até mesmo a situação econômica exerce
influência nos dados".
"A PRF vem envidando esforços, em todas as
frentes do tripé da segurança do trânsito, notadamente no esforço legal, com a
sugestão de aprovação e efetiva aplicação de leis, resoluções e ações de
educação para o trânsito, estas com a proposta de consolidar uma cultura de
segurança viária na sociedade e na infraestrutura, com atuação integrada com
agências como Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes] e
ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres]."
A reportagem também questionou a mudança nas
atribuições do órgão, mas não obteve resposta.
O alinhamento da PRF com o Planalto se
intensificou em 2020, após Bolsonaro demitir o diretor-geral Adriano Furtado. O
motivo da exoneração foi Furtado ter escrito, em abril daquele ano, uma nota
afirmando que um agente da corporação havia morrido vítima da Covid-19. Após a
demissão, Bolsonaro nomeou para o cargo Eduardo Aggio de Sá. Ele foi
substituído em 2021 por Silvinei Vasques, que segue como diretor-geral da
corporação. Na gestão de ambos, o presidente fez visitas a postos, com
saudações aos caminhoneiros que trafegavam pelas rodovias.
A PRF apreendeu 40 toneladas de cocaína em 2021
--o recorde do órgão e o ápice de uma alta nas apreensões sob Bolsonaro. Em
2019, foram 24 toneladas da droga apreendidas; em 2020, 30,5 toneladas. Azevedo
diz que o aumento é resultado de uma série de fatores, como o incremento da
produção de cocaína em países da América Latina e o investimento em tecnologia
da informação, que ampliou a capacidade da corporação de planejar ações
específicas contra o tráfico de drogas.
Para Renato Sérgio Lima, do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, a PRF deveria criar mecanismos para a prestação de contas. "Quando
você força as instituições a prestar contas, as polícias se regulam. Significa
reduzir o grau de discricionariedade. O comandante tem que responder por que
autorizou o emprego das forças em cada situação. Essa é a receita para melhorar
a segurança no Brasil."
Por Cézar Feitoza | Folhapress
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