Estado brasileiro mais uma vez
surfa a onda do clamor midiático por leis mais severas, que são, porém,
ineficazes para atacar a violência descarrilada.
Até que foi longo o caminho
percorrido, digamos, pelo fuzil, desde a sua classificação oficial como
“inimigo público número um do combate ao crime no Rio” – conforme selou, quando
ainda era chefe das polícias do estado do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame,
esse ex-secretário de Sergio Cabral Filho, pai das náufragas UPPs, sobre o qual
ainda não se tem notícias de implicação sua em farras de guardanapo ou de papel
moeda – foi relativamente longo, dizíamos, o caminho percorrido desde aquela
ocasião, em março de 2015, até a transformação não propriamente do fuzil, mas
de quem o portar ilegalmente, em criminoso hediondo, há poucos dias, em outubro
de 2017, quando pela caneta sancionadora tomada de assalto por Michel Temer
deu-se vida à lei 13.497/2017.
A lei 8.072/90, conhecida como
Lei dos Crimes Hediondos, sancionada por Fernando Collor de Mello em julho
daquele ano, foi a resposta que o Estado resolveu, optou, conseguiu dar ao
clamor social e midiático por leis mais rigorosas com os criminosos – os criminosos
comuns – desencadeado a partir do sequestro do empresário Abílio Diniz, em São
Paulo, numa época em que a culpa já era do PT.
Não tão depressa aconteceu a
inclusão do homicídio qualificado na Lei de Crimes Hediondos, em setembro de
1994, no esteio de mais um ronrom ensurdecedor por endurecimento penal, cujo
gatilho foi mais um crime de imenso apelo dramático para a radiodifusão
ocorrido um ano e nove meses antes, em dezembro de 1992: o assassinato da atriz
Daniella Perez por um colega de cena da novela da Rede Globo que estava no ar
na mais nobre faixa de teledramaturgia da casa — novela essa escrita por
ninguém menos que a mãe de Daniella, Glória Perez; colega aquele com quem
Daniela formava o par romântico Bira e Yasmin em “De Corpo e Alma”.
A jato, essa sim, foi a
equiparação do crime de tortura aos crimes da qualidade de hediondos, cinco
anos mais tarde, em abril de 1997, apenas um mês depois do escabroso caso da
Favela Naval, de espancamento e achaque de moradores daquela localidade de
Diadema, na região metropolitana de São Paulo, por policiais militares, quando
o grande protagonista dos vídeos exibidos no Jornal Nacional com flagrantes da
violência da PM foi o policial e assassino Otávio Lourenço Gambra, vulgo Rambo.
Ninguém poderia imaginar que 20
anos mais tarde, em 2017, um novo adendo à Lei dos Crimes Hediondos seria feito
pouco depois de uma nova alusão à franquia sanguinolento-cinematográfica
estrelada por Sylvester Stallone para ilustrar o estado da violência no Brasil:
o ápice do hodierno maremoto noticioso sobre uma corrida armamentista
protagonizada por varejistas de drogas do Rio de Janeiro teria sido a midiática
apreensão na favela de Parada de Lucas, na zona Norte carioca, de uma
metralhadora M60, capaz de derrubar até helicóptero, sendo idêntica à arma
preferida — assim a imprensa correu para lembrar — do lobo solitário John James
Rambo.
75% ou 2,7 pontos percentuais
Teria sido, se a “metralhadora do
Rambo” não fosse de brinquedo, conforme anunciado pela Delegacia Especializada
em Armas, Munições e Explosivos (Desarme) quatro dias depois da apreensão. Fora
esse constrangimento hollywoodiano, não têm faltado na imprensa carioca
manchetes de deixar as classes médias do Rio de Janeiro de cabelos em pé:
“Apreensão de armas no Rio encontra fuzil que pode matar a um quilômetro”,
“Número de fuzis no Rio faz com que praticamente qualquer pessoa possa ser
baleada”; nem tampouco notícias de tirar de vez o sono das classes mais pobres:
“Ladrões usam fuzil para roubar em fila de emprego”; ou mesmo de deixar
alarmados todos os estratos sociais: “Perito Legista da Polícia Civil: ‘Tiro de
fuzil é morte quase certa’”.
Em meados de outubro, o programa
Fantástico, da Rede Globo, exibiu uma longa reportagem sobre a rota
contrabandista internacional que abastece os traficantes do Rio de Janeiro com
fuzis AK-47. Poucos meses antes, em junho, no dia em que 60 fuzis foram
apreendidos de uma tacada só no aeroporto do Galeão, o secretário de Segurança
Pública do Rio, Roberto Sá, mostrou-se emocionado durante uma entrevista
coletiva:
“O motivo da emoção é esse, a
tentativa de construção de um Rio de Janeiro menos violento. No Rio de Janeiro,
traficante só tira onda de macho por conta disso, de ter o fuzil. A hora que
tiver com pistola, ele vai dar meia volta”. Em números absolutos, a apreensão
de fuzis no Rio aumentou 75% nos primeiros oito meses de 2017 em relação ao
mesmo período de 2016, para 347 armas desse tipo apreendidas entre janeiro e
agosto últimos, incluídas as 60 do Galeão. Quando se trata da proporção de
fuzis entre o total de armas apreendidas no estado, porém, o aumento fica
muito, muito longe até de chegar a bater em dois dígitos, tendo subido de 3,2%
para 5,9%, segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
É um aumento de 2,7 pontos
percentuais relativos que não produz o mesmo impacto de um retumbante aumento
absoluto de 75%, e que é um tanto menos compatível com o sentido que se pode
apreender do noticiário carioca do tempo presente, que é o de um novo perigo de
destruição em massa, por assim dizer, representado por uma súbita, célere e
incontrolável proliferação de fuzis de guerra nas mãos de criminosos.
O feminicídio após virar hediondo
No que diz respeito ao conjunto
da região mais desenvolvida do país, informa o relatório “De onde vêm as armas
do crime no Sudeste”, do Instituto Sou da Paz, com números referentes ao ano de
2014: “A análise dos tipos de armas mostra que quase metade das armas
apreendidas na região Sudeste são revólveres (49%) seguidos por pistolas com 21%
e espingardas em terceiro lugar com 13%. Entre as armas de maior poder de fogo,
as carabinas e rifles aparecem com mais frequência, somando 3%. Em seguida
aparecem fuzis, com apenas 1%, e submetralhadoras, com 0,8%. Somadas, estas
armas de maior poder de fogo chegam a pouco menos de 5% do total. Fica evidente
que o problema da região em relação ao tipo de armas usadas no crime se
concentra nas armas curtas, de porte. Três em quatro armas apreendidas (77%)
são revólveres, pistolas ou garruchas”.
O instituto produziu também um
relatório de âmbito nacional, “De onde vêm as armas do crime”, com dados
relativos aos anos de 2011 e 2012, período em que os fuzis aparecem como a arma
usada em apenas 0,4% dos homicídios registrados em todo o território brasileiro,
com revólveres e pistolas aparecendo, somadas, em 96,5% dos casos. Diz o
relatório:
“Confirmando o que já foi
apontado em pesquisas anteriores, manteve-se e em alguns casos aprofundou-se o
diagnóstico de que as armas que vitimam a sociedade são armas curtas (93%,
principalmente revólveres e pistolas), e em sua grande maioria nacionais (78%)
e de calibre permitido. A empresa gaúcha Taurus, que detém praticamente o
monopólio do mercado legal de armas no Brasil, também domina entre as armas
apreendidas com os criminosos (61% de participação). Na lista das 5 armas mais
apreendidas com o crime (combinando tipo, marca e calibre) detém não só o
primeiro lugar com o Revólver Taurus 38, como também outras 3 posições”.
Não obstante, foi o porte ilegal
de “armas como fuzis” a resposta que o Estado resolveu, optou, conseguiu dar ao
clamor social e midiático por providências contra o notório agravamento da
violência nas grandes cidades brasileiras. Um Estado em crise que parece não
saber o que fazer diante da crise de segurança pública, ou que sabe
perfeitamente que não há muito o que fazer em matéria de segurança pública em
um cenário de disparada da insegurança em todas as esferas da vida, do emprego
à saúde, passando pela escola das crianças e atirando à absoluta incerteza a
própria perspectiva de uma vida digna no dobrar do mês. Resta, ao Estado,
surfar a onda da lógica midiática, a do Rambo, remando contra tudo o que é dado
como garantido pela criminologia mais séria e consequente, como a absoluta
ineficácia do endurecimento das penas para dissuadir, por exemplo, de matar uma
mulher alguém capaz de matar uma mulher pelo fato de ela ser mulher.
Antes do porte de armas de uso
restrito, o crime que mais recentemente tinha ganhado o agravante de hediondo
foi o feminicídio, em 2015, mediante projeto de lei elaborado pela Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) da Violência contra a Mulher, projeto
esse aprovado pelo Congresso Nacional na semana do Dia Internacional da Mulher
e sancionada, a lei, logo em seguida, pela presidente Dilma Rousseff. Dados dos
Ministérios Públicos estaduais divulgados em agosto desse ano mostram que o
Brasil registrou oito casos de feminicídio por dia entre março de 2016 e março
de 2017, totalizando 2.925 crimes desse tipo no período. Foi um aumento de 8,8%
em relação aos 12 meses anteriores, período iniciado em março de 2015, ocasião
em que Beltrame dava o alarme sobre os fuzis e precisamente quando o
feminicídio foi incluído no rol dos crimes hediondos.
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